quinta-feira, 24 de março de 2011

aparências

goza e treme toda a carne rubra,
num despudor que nunca houvera
em gemido que nunca ouvira
sair de sua boca.

o peito incha pra caber o coração
que pulsa como um tambor
descompassado para a melodia
de um puro e eterno amor.

leviana, apenas, se contorcia
no prazer que saber que,
entre as irmãs do convento,
era a menos santa, mais libidinosa.

e que se era suja sua lição
aos jovens coroinhas,
pelo menos aos olhos do diabo,
era a mais gloriosa.

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do jeito que o diabo gosta

da maçã possível

a pena obedece ao castigo
de emudecer a alma, calar o grito, o canto, a dança, o giro
silencia o coração, faz aparecer o homem
nu sem as palavras que tanto lhe pertencem
que tanto que consolam e lhe vestem
que tanto lhe dão poder
que ele até um dia pensou que podia ser
como deus no paraíso:
"faça-se a luz"
e estava feito, porque estava dito.
mas se vê adão,
na tão pouca murmúria gelidez do espírito.

rio

avante, o redentor, que dota os céus de melodia.
do alto, arranha-céus, na triste alegoria.
no alto, a pobreza, a vigiar solene o paraíso.
acima, o mar azul, com ondas de núvem e sorriso.

chove caos e alegria, por sobre a maravilha
que cariocamente se esparrama na praia,
com castigos de osíris e honras de orixás
entre as rochas e areia, afrodisíacos.

à parte os montes se refrescam na brisa,
a imensa catedral de vidros encarnados,
o teatro magestral de vivos espíritos
e dourada fachada, por dentro vazio,

os arcos, que já perderam a aliança
como criança que perde o bonde
sonhando chegar a Saudade
sonhando comer o pão de açúcar.

branco

no ventre do sertão pernambucano,
de cambraia empoeirada como vestes,
a mãe da sofredora das pestes
reza à morte que seja benfazeja.

criatura imunda, a criança,
já de decompõe no colo maternal
sedenta, a rasgar-lhes as mamas
com a gengiva, à procura de leite.

a mãe se contorce, sofre calada,
miséria muita a sua, a seca
pecado seu, aquela vida nova e pouca.

como o couro das vacas, cravejado
só por abutres, ao eterno meio-dia,
só o peito da mãe, ao ver morrer a filha.