quarta-feira, 27 de outubro de 2010

rotina da cama




não chore, meu bem. ainda há primavera
mesmo que ela não cheire como de costume,
mesmo que não seja assim tão bela.

não ria, carinho, de descrença.
há mil caminhos ainda a seguir,
mesmo que seja antes do que se espera.

não me humilhes, paixão, por antigas quimeras.
só não há surpresa todo dia,
não há mais fartura nem miséria.

não se afaste, amor, dessa navalha
que floresce a gota pequenina de uma rosa
mesmo que não seja cedo, nem seja prosa.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

vícios

minha alegria
cacto de boa intenção
sempre me apraz
quando me abraça
mas nunca vê depois
na carne o rastro
daquele tato malsão

vida despercebida

Silvano, sujeito pacato, de leve e em leves passos, leva a vida no quanto sua mediocridade o permite. Estende-se na preguiça como ele só. Dá-se bem com a vizinhança e tem amizades tão antigas quanto o oratório de sucupira, em frente ao qual reza a Deus - desde sua infância - para que bons ventos o permitam aproveitar uma boa vida na mais branda inércia.

Silvano tomou para si as conquistas que o destino lhe enviou ao acaso, com ar de coisa que "Deus sabe o que faz", e nisso fica desde a juventude. Casou-se com a primeira namorada que sua tímida beleza teve o míster de alcançar sem suar muito. Teve dois filhos como quem vai ao mercado: mais pela necessidade de sua mulher do que pela sua vontade. Amava-a sinceramente, mas isso foi pouco, e ela o deixou pela vida ingrata - mas muito mais vibrante - de mulher de malandro.

Silvano pegou o emprego que lhe bateu à porta no intervalo do futebol. Viveu daquilo, na firma, sem gostar e sem desgostar, enquanto lhe permitia pagar as contas de água e luz -por uma bem aventurança do destino, seus pais morreram de desastre e daí ele nunca se prestou a preocupar-se com contas de aluguel.

Silvano, na firma, escrevia relatórios e contava carneirinhos, mas na ordem exata, para que a chefia não percebesse. Também para que não atrapalhasse qualquer meditação que o assaltasse a cerca das possibilidades do horizonte, sobre maravilhas do litoral (que quase nunca visitou), ou das curvas exatas de Amanda (vizinha, a quem nunca arriscou cortejar), ou do que haveria na esquina do quarteirão de sua casa, onde sempre se amontoava uma multidão curiosa - todas questões que ele ruminava e cuspia, sem jamais agir sobre elas.

Silvano, em casa, lia jornal, comia pouco, aguava as plantas, ria ocasionalmente com alguma visita. De resto, saia de casa apenas aos domingos, visitar a igreja mais próxima, fingir interesse por algum parente e depois, dormir cedo.

Silvano percebeu um certo dia que não era muito bom em cuidar da própria vida. Foi aporrinhar um psicólogo, que nada conseguiu fazer para mudá-lo, e desistiu do paciente após o oitavo mês.
Silvano pensou em se irar com o jovem terapeuta, mas decidiu que se nem ele podia ajudá-lo, era porque nada havia para ser ajudado, e seguiu a rotina anestesiante de ser Silvano.

Silvano viveu como uma planta: cresceu no curso inevitável sob o Sol, floriu como era de costume, semeou como era de se esperar, alimentou-se da chuva que ocorresse, jamais extravasou o conforto mínimo de seu canteiro, e apodreceu de pé, sem que ninguém notasse.
Morreu numa quarta, deram falta dele na sexta, e sábado foi enterrado.

Silvano só será lembrado pelos vermes que alimentou, durante curto tempo que tiverem para dissipá-lo.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

carta para um amor distraído

... mariana sabia o gosto da sua voz, gustavo. sabia que nela, ela tinha calma, conforto e até amor. mariana sentia até chuva do seu sorriso, menino, quando na noite ele caia e se espalhava. mariana cheirava seu perfume quando você ia à terra distante, só de ficar parada ali na beira do cais. mariana amou o seu corpo nas madrugadas de quarta-feira, e nas de quinta, sua lembrança envidraçada.

mariana suportou te amar, homem, como se você fosse infinito, nas tardes de domingo. mariana soube te perder como nenhuma outra. mariana se condoeu pelas suas amantes, rapaz, como se a elas você traísse com mariana.

mariana tateava o teu rosto na grama. mariana escondeu o teu peito das facas afiadas do destino, no quanto ela achou que podia. mariana embargou o mundo por você. mariana empacotou na tua marmita pra viagem os sonhos da juventude dela. mariana dormiu com a tua ausência, como se isso fosse bênção de deus. mariana apodreceu no silêncio suas lamúrias para não te injuriar. ela sempre maqueou um sorriso pra te receber. mariana te pediu, implorou pra você voltar.

mariana, gustavo, não se cansava de você.

e você, jura que não mente, promete que cumpre, manipula o tempo (achando que ela não vê). supõe que prevê tudo o que pode acontecer, supõe que ela vale pouca coisa, supõe que seja estúpida, supõe que larga dela assim que quiser. supõe que julia, natália ou maria valem mais a pena.

uma pena, gustavo, uma pena.

mariana, bem aos poucos, na surdina do almoço -um banquete de vingança - te envenena.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

fortes

há uma menina na borda do rio seco, rindo como se em seus olhos existisse um oásis.
há um mendigo na beira do silêncio, mastigando, em sua fome, a verdade.
há uma mulher no limite do precipício, encontrando na vertigem a sua integridade.
há um menino na fronteira do dia, dizendo, sozinho, quantos anos um minuto tem.
há um profeta no fim da mentira, sibilando aos surdos a esperança que nunca vem.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

cosmologia

já me disseram o tamanho do cósmos
com as letras tão infinitas dos neurônios
que, se me pedissem uma palavra,
como uniria tudo o que nós somos?

brisa, areia, fagulha, onda?
um momento de insônia?
segundos-mandamentos?
tercetos incompletos?

reza, teoria e verso?
o que será o universo
que eu nem enxergo,
nem a metade, nem inteiro?

um infinito de estrelas
numa ampulheta.
um limite inapropriado
de mim mesmo.