quinta-feira, 13 de novembro de 2008

que nome é possível?

coisa de uma cena que me angustia com uma dose inoculada de remorso.
dessas que aconteciam todo dia, no início de tudo. no início do meu início. na inexorabilidade da minha própria existência.
algo que como uma comoção incomoda, quer perfaz minhas artérias, minhas veias, meus pulmões com a baforada seca a acre de minha mudança, de meu apaziguar-se, da minha inegável estupidez. da minha configuração, adaptação, do meu deixar levar. e capaz de emudecer-me de tal forma, que meus olhos, percebo, estavam surdos.


se fosse obrigado, culparia a metrópole, e seus úteros podres, que só parem destinos falhos e abominação. ou à psicologia, grande mestra de muita de nossas ignorâncias. mestra verdadeira, pois nos educa e nos justifica. nos torna impunes por natureza, naquele mecanismo de auto-preservação, que aniquila o terror que nos assola nas calçadas imundas, nas praças, nos becos... a ponto de eliminar o desconforto da desgraça iminente. sedando-nos, e nos insandecendo.
mas a verdade me força a maiores razões, a uma maior distância. ela me joga nu na rua fria de uma realidade pavorosa, onde a chuva inconstante torna aflito o sono e o coração.
a cena se resume numa praça burguesa da cidade, onde tantos transitam irreparavelmente absortos em seus problemas, uma multidão de solidões.

no meio de um canteiro gramado, uma mancha se meche e respira. a era um menino, mirrado, uns 7, 8 anos, encolhido debaixo dum trapo, adormecido por entre a orquestra violenta da total indigência metropolitana.
passa uma mulher:"por favor, onde fica a Rua Ceará?" numa voz de outras terras - nordestina, com certeza, roupas bonitas e simples. achei irônico aquilo, sorri por dentro. respondi:"acho que uns dois quarteirões abaixo. mas não tenho certeza. pergunta naquele bar, eles devem informar melhor." seguiu-se um"obrigada" de sua parte e da minha, "boa noite".


eu fumava tranquilamente. a chuva fina não era problema meu. ponto de taxi em frente... tudo bem, estava já praticamente em casa, 23 quarteirões dali.
a mulher vai ao bar, volta. paralisa-se um instante. vai até o menino, cobre-o com uma blusa dela num carinho quase maternal. deu-se um tempo de um minuto aquela cena. e cada gesto seu me comovia. ela deixa o menino ainda dormindo, se afasta de vagar. toma seu rumo para a Ceará.

a visão me deixou estarrecido. não por nunca tê-la visto, mas por perceber que tinha desgraçadamente me acostumado a ela, nunca percebido a coisa nela como parte de mim.
me culpei, senti-me sujo em minhas vestes, um verme. como me tornara essa coisa que tanto abomino? essa massa mansa, que se deixa levar cega e surda pelas ruas? cabresto?
aquele ato de uma desconhecida a um indigente, puro e simples compadecimento, cheio de um importar-se com o outro, alheio, vago, nulo, perturbou-me.

parecia que eu havia recobrado a visão, e uma dor necessária me tomou. remorso, egoísmo, indecência. deu-me vertigem suspender o manto transparente da realidade.
aquele menino, tão humano, tão igual a mim... apodrecia com o que parecia ser o meu consentimento, com a minha inércia. senti-me horrível. perguntava-me porque. vi que algo na alma, somente nela poderia despertar essa sensibilidade. perguntava-me o que meu pensamento, o que a minha vida poderia fazer para ajudá-lo. não para limpar a minha consciência, não para livrar-me de um fado pesado. para libertar-me de uma cegueira, para mover-me em ação definitiva.

pode o pensamento de um só realmente mudar o mundo? sempre me parece que não. mas não me conformava com essa resposta. que podem os sábios e os poetas em seus gabinetes, em seus livros contra essa maldição?
parece-me que tudo agora tornou-se frivolidade. mentes dissonantes com a verdade, aquela que tanto se busca e tanto se esquece. a vida não são pensamentos nem palavras, como tudo que eu era, como tudo que sou. a vida é maior e pior, mais baixo, mais ventre e entranha. a vida é estômago, não cérebro.
resta-me essa sombra de inutilidade. esse persistente despropósito. esse pó.

o menino, continuou a dormir, na chuva. tentei acordá-lo, me afastou, ainda dormindo. "você vai se molhar, amiguinho! acorda!". nada. a chuva aumentou sentei-me ao seu lado, esperando que houvesse ainda resposta diferente. nada. dez minutos fiquei, remoendo as sensações. por fim, largando-o miseravelmente ao abandono, fui ao taxi: "pega a francisco sales."

e cá estou. incomodado. confuso. como a derramar bile em linhas, em palavras. confinado na minha insignificância, na miséria alheia, que se fez minha. sou parte disso. não como eu pensava, mas como realmente era. dói-me. recolho-me.

como será o mundo agora?

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

o rei dos ladrões

escreve e não esquece:
o muro da tua casa
é tua guarita de guerra.

se estranho se aproxima,
não espera! atira!
e ferra o desgraçado!

não deixe a porta aberta
segundo algum, nenhum dia.
põe cruz dentro, contra bruxaria.

não estremeça quando o medo,
o de mãos terríveis, lhe tocar.
sê firme! e morre, sem ralhar.

à noite não durma,
de dia espera e guarda
sua madrugada.

e aguarda que te encontra
esse pior bandido, inimigo copioso:
esse amor sem razão ou consolo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

dum lugar no tempo

de todos os cantos
murmuram livros de vento
com vozes de pardal e sabiá.

a tarde enaltece a paisagem,
as idéias suspiram novos lares
e repousam nas prateleiras.

olhos atentos procuram
palavras, versos, teorias.
a tarde anoitece a passagem.

a porta está entreaberta,
as crianças gingam, esculacham,
e cadecem de novos horizontes.

há uma infância toda
enclausurada e livre
nas mãos de Fernandos, de Carlos, de Ligias e Cecílias.

cada página respira.
vilas aparecem, passam laranjeiras.
Lucas lê Crosué nas casas de Minas.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

a última lembrança

tenho medo do escuro, mãe.
deixe a luz acesa.
cada dia é um segundo, mãe,
antes que eu adormeça.

deixa fora, mãe, esse medo
ele não deixa a paz.
esconde logo esse silêncio,
ele não se desfaz!

tudo agora é vazio, meu filho.
deixe estar.
o mundo é farto e eterno fastio,
o que resta é esperar.

deixa disso, mãe! vem! se mexa!
a porta está aberta, é só passar.

vai-se embora! corre, menino!
é a sua hora de atravessar.

que é isso que cê treme, mãe?
alguma coisa aconteceu?
não é nada grave, querido
é só que agora me anoiteceu.

quê eu fasso, mãe? agora tá tão frio!
por que dessa voz rouca?

vai-se embora que a manhã é pouca, filho.
não te esquece que a brisa é sempre abrigo, e vai.
o Sol te aquece, e não esqueça:
cresce! voa! corre, menino! agora o seu destino é seu.

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*imaginem um violão tocando ao fundo,
encontrem um ritmo...
será que eu paro por aí?