segunda-feira, 7 de novembro de 2011

é uma mania minha essa: ser tudo o que sou no que não posso. se fosse ainda pouco, ainda o rosto só, fachada, ainda ia... ainda dava pra ficar calado. mas tem um coisa, uma coisa meio torta, destrambelhada, que na feiura insiste em se sentir cisne perdido e encontrado, desejoso de gracejar por entre a névoa, no lago tão profundo que é vontade, que numa tarde ou outra da vida a gente encontra dentro dum jardim, dentro do amanhecer, num funeral, num olho de menino (olho que já tivemos, e já não somos).
pois essa coisa torta cisma em grasnar vez ou outra, para fazer com que as nuvens caminhem, pra apontar uma direção oposta, pra virar a página do caderno tão mas tão branco que é a vida apagada dessa gente... grasna pra não fazer coisa nenhuma. só pra marcar um passo na valsa do tempo, uma nota no canto do coro (tão inaudível coro humano), uma trégua mínima da consciência. e ao invés de roçar a garganta no vento, roça os dedos nas paredes, na grama, no asfalto húmido da quinta-feira, nas frutas da quitanda, nos copos, nos olhos, nos beijos, no tão eterno e frívolo branco da mente, na tão pequena e terrível dúvida que é a vida, no tão esperado e contente sono da arte para pôr fim, traçar a reta, cingir e dispor no palco umas palavras, e esperar, quem sabe, que um público apareça... um publico que será eu?

domingo, 6 de novembro de 2011

relance

lava minha culpa
que entre as pernas
ela doce escorre
um tanto demente
como espuma

seca minha fé
maré de penas
ela olha e dorme
meio à ramagem
dos seus lençóis

nina a volúpia
que no ventre
no caos morno
dessa tarde
é carne rija

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

sílabas da noite (ou peito aberto)

os tambores daquela Minas
gritam tão e tão mais fortes
bem cá depois do Atlântico,
na minha alma de menino,
nas madrugadas-oceano

breve ufanismo

eis que sobe à terra lusitana
a mais pura e terna gente
que entre a mata profana
fizera-se fértil docemente.

há quem dizer aos céus profana
o nobre solo mui bendito
que entre as águas de Netuno
fez-se porto à capitânia,

pois quem de fome padecia
a todos acolhia, faceira,
a terra, sem pôr juro ao luxo tido
por sobre a areia banca

e acatando-se ao reino
muito ousado da natura
fez, pois, da vera o mito,
nas cousas raras da ventura:

nasce em solo brasileiro
brava e forte e grande gente
que, para dizer o costumeiro,
cresceu dura e alegremente

e vem-se ter ao velho mundo
nobre, grande e simplesmente
pelos elos fracos de azares
pela necessária corrente

que faz zelar a vida humana
por sua fraca luz perene
jorrando na estrada tortuosa
até um terno e findo ocidente.

suspensão

folha amarela brota do teu sorriso
com pequenas gotas de orvalho
será esse inverno um algoz rijo,
ou serás pequena flor de carvalho?

a branca névoa sobre a planície,
que vozes são essas que ela ecoa?
serão frutos alegres da meninice
ou do silêncio que jamais perdoa?

rio, com as águas de tantos mares,
são feitas de alegrias sublimadas
ou males apenas a cruzar os ares?

cama essa, com sono encimada,
traz noites cobertas de pesares
ou sonhos leves com a amada?

sábado, 17 de setembro de 2011

reconheço que é tardia a hora que se vai entre os parques desalinhados, catando pela beira dos sapatos a dignidade tão perdida entre os cascalhos. os seixos desavisados, rompentes do frágil tecido que mãe d'água fez ser grande, muito grande demais. florestas imaginadas, casa sonhadas, línguas soltas, à mingua. quantos verbos alcoolizados se precisa, para escrever um clássico?

entre o douro e outros rios

é pouco e tanto o gesto que de cá se apreende,
que na vida quem não pode ser senão ausente,
querer possa a voz que não lhe ressoa,
pois que a boca corre à voz de outra pessoa.

já amar não se pode o que não se perdoa,
esquecer jamais o que já é corrente,
enxergar não mais o que se povoa
no pavor austero de névoa diligente.

pois se como essa gente, farta
e morta na loucura ordinária
(d' aurora ao pôr do sol, pois, é o que se sente)

findar eu não possa como outro indigente,
mas marcar nas areias inconstantes
a voz pouca que me prende.

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camões, cá em outras terras, me oriente,
num ocidente mais originário
e ordinário do que se pretende
(mais fabuloso e banal do que o que se sonha),
no frescor de auroras mais antigas e mais potentes
(quando não mortas),
mais jovens e mais vazias
(quando, em sempre, renitentes).

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saudades de ser outro.

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ao xará, matheus batista, (parecidos nós mais que só no nome) os terceiros poemas em terra estrangeira.

o último setembro

agora é um nunca mais de ilusões:
janela fria, rio largo, montes a menos,
portos a mais, suaves membros
a deslizar sob os gestos violentos.

nessa suave tempestade abrasiva
que entre penas e bicos refestela
a pouca margem que existe
para oceanos de mais, pouca terra

para o que insiste em ser poema
e novela, e novena e persistência
duma esperança que jamais se afoga,
mas entre as ondas, se cansa.

há pedras demais pra pouca terra.
areia demais, tempo de menos
nessa ampulheta larga e pura
que a vida faz na foz dos horizontes.

reviradas

a minha alma pequena viaja
na imensidão entre os meus passos:
ora no aço macio da espada,
ora no cheiro duro das rosas.

ranço, belo e morto, ressoa
o brilho eterno de estrela
n'outro lado indistinto da esfera
que de mão em mão vagueia
senhora e serva de toda pessoa.

a espinha pouca manipula
mais que os medos e orgias:
cada lembrança retesada
cada pérola semi-nua

nos raios prateados, fiados
no vento, marionete revirada
recomponho a alma imensa
no lento espaço entre os passos.

sob a lâmina da lua violenta
a minha alma imensa alumeia
o espaço pequeno entre meus passos.

domingo, 14 de agosto de 2011

clube da esquina

me arrepiam essas vozes que voam bem entre os copos, no crespo do dia nascente de minas, melhor que qualquer outro lugar. essa voz que parece dizer o que o coração ainda apenas suspeita, revelar o que o hábito lacera, montar o que a melodia espalha nessas neblinas, nesses vales, montes, grutas, cachoeiras, nas pedras do calçamento centenário, nos sinos invisíveis, nas almas desavisadas...

quinta-feira, 24 de março de 2011

aparências

goza e treme toda a carne rubra,
num despudor que nunca houvera
em gemido que nunca ouvira
sair de sua boca.

o peito incha pra caber o coração
que pulsa como um tambor
descompassado para a melodia
de um puro e eterno amor.

leviana, apenas, se contorcia
no prazer que saber que,
entre as irmãs do convento,
era a menos santa, mais libidinosa.

e que se era suja sua lição
aos jovens coroinhas,
pelo menos aos olhos do diabo,
era a mais gloriosa.

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do jeito que o diabo gosta

da maçã possível

a pena obedece ao castigo
de emudecer a alma, calar o grito, o canto, a dança, o giro
silencia o coração, faz aparecer o homem
nu sem as palavras que tanto lhe pertencem
que tanto que consolam e lhe vestem
que tanto lhe dão poder
que ele até um dia pensou que podia ser
como deus no paraíso:
"faça-se a luz"
e estava feito, porque estava dito.
mas se vê adão,
na tão pouca murmúria gelidez do espírito.

rio

avante, o redentor, que dota os céus de melodia.
do alto, arranha-céus, na triste alegoria.
no alto, a pobreza, a vigiar solene o paraíso.
acima, o mar azul, com ondas de núvem e sorriso.

chove caos e alegria, por sobre a maravilha
que cariocamente se esparrama na praia,
com castigos de osíris e honras de orixás
entre as rochas e areia, afrodisíacos.

à parte os montes se refrescam na brisa,
a imensa catedral de vidros encarnados,
o teatro magestral de vivos espíritos
e dourada fachada, por dentro vazio,

os arcos, que já perderam a aliança
como criança que perde o bonde
sonhando chegar a Saudade
sonhando comer o pão de açúcar.

branco

no ventre do sertão pernambucano,
de cambraia empoeirada como vestes,
a mãe da sofredora das pestes
reza à morte que seja benfazeja.

criatura imunda, a criança,
já de decompõe no colo maternal
sedenta, a rasgar-lhes as mamas
com a gengiva, à procura de leite.

a mãe se contorce, sofre calada,
miséria muita a sua, a seca
pecado seu, aquela vida nova e pouca.

como o couro das vacas, cravejado
só por abutres, ao eterno meio-dia,
só o peito da mãe, ao ver morrer a filha.