sexta-feira, 30 de maio de 2008

carta n° 5 [dos passados]

como tenho saudades daqueles tempos
que só voltam um segundo, se tanto
nessas fotos esquecidas no espelho.

existem lembranças, amigos, intentos,
tantas coisas que não se repetem
que não se retém - mesmo em sonho.

mas, antes que o coração apodreça
é melhor que se diga, de pressa:
não descumpro minha promessa!

não esqueço, me esforço e detenho
qualquer coisa mais em pensamento
que as velhas lembranças surradas
e nossa velha inocência perdida.
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... morrendo de saudades de tudo aí.
partes de mim que ainda não encontrei, residem aí, nas praias, escondidas na areia, no parquinho, na velha escola abandonada...
tanta coisa tão perdida e tão achada quebrada de baixo do tapete, atrás das cortinas do vento.
há uma coisa de lembrar o passado que nos consome, percebe?
algo que lacera e revitaliza, sem nunca apagar de todo, sem nunca se deixar morrer de todo... sem nos deixar morrer de todo, pelo menos.
um grande abraço na turma toda, especialmente em você.
anos que não vejo ninguém, a imaginação voa alto e pesada...
como vai tudo?
grande abraço.
mande notícias do mundo de lá.
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escrita para Vitória, a cidade que habita uma parte nebulosa do meu passado, e para as pessoas que lá habitam, na cidade em mim.
acho que ainda tenho alguma corrente me prendendo lá, de forma deliciosa - e triste.
30/05/2008

segunda-feira, 26 de maio de 2008

verborragia sabedora

alguma coisa eu sei por ouvir dizer que se sabe sabendo que tudo que se sabe sabe-se ao meio e pouco menos que as coisas lúcidas são sabíveis descobri que saber é pouco mais que estar acordado mas sabendo que se sabe assim somente a metade há de fazer saber que saber é também dissabor pois nada saber é melhor que saber metade do que há para saber
porém se sabe-se que a metade outra não se pode saber a metade é saber tudo pois se sabe que não podemos saber o que é impossível saber saber metade é saber o que há pra se saber e é portanto saber tudo
mas do dissabor do saber metade isso é a saber a coisa mais sabedora entre os saberes e os sabores
saberás que não há sabor real em saber e saber não tem sabor pois não queima nem esfria não fede nem cheira não sabe nem não sabe
saber é não saber e isso é saber pois sabendo que não se sabe faz saber que sabemos o primordial que saber não se sabe
e isso é saber o bastante
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imagem: www.camiseteria.com/design.aspx?did=16664

terça-feira, 20 de maio de 2008

carta n°4 [a carta que eu não te escrevi]

Não me pergunte sobre aquele dia, pois me foge a lembrança. Coisas que são melhores esquecidas. Mas sempre levo teu rosto (por benção ou maldição). Sei que o tempo era muito vasto e muito curto, e que o espaço despedaçava. Diluia em lágriams algumas que brotavam puras e benevolentes à dor, criavam cravos e rosas e flores do campo, pequeninas e brancas em numerosas coroas.
Lembro que a memória refestelava, e que a alma se partia (tamanho golpe que, sim, me lembro como se fosse ontem). Lembro que na fenda ficou vazio. Lembro que o vazio se encheu de veneno, que matava toda graça.
Lembro que tudo que fora dito, foi esquecido. Lembro que só me ficaram (ainda até hoje me perseguem) as palavras não ditas, entaladas, mutiladas no silêncio.
Lembro do travesseiro duro, da coberta fria, da noite demente que se arrastava perante as estrelas.
Lembro que o dia amanheceu como um desejo agonizante de viver...arrastou-se, arrastou-se...
e lá pela quase meia-noite dormiu.
Nunca te perguntei: como você gostava de mim?
Sei que eu nutria por você, e não me era segredo, inveja.
Uma inveja brincalhona, como que de um fã, de irmão mais novo. Minha vontade era mesmo te encontrar cada vez mais no meu espelho, no meu espírito. Queria ser como você, andar como você, falar como você, agir, sentir, pensar, amar e sofrer como você. Muitas vezes me odiava, se não pela minha incompetência, pela idiotice dessa inveja. Na verdade, ela ainda existe.
Nunca tive pena de você. Senhor de si, sei que havia algum motivo... E se não tivesse, não importava. Mesmo naquela madrugada que deprimia até a mais cálida rosa branca.

Não tinha pena, mas já não tinha inveja, nem ria...
A dor era tanta naquela despedida tão definitiva, tão eterna... perdia-se o sentido.
Enquanto te escondiam com madeira e terra e cruzes e números, mesmo assim submerso, te sentia ainda soerguido, vivo e inteiro, ao meu lado no vento, murmurante... em mim.

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OBS:
a única e verídica carta
04/03/2007
(para o bruno)
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segunda-feira, 19 de maio de 2008

carta n° 3 [sobre as cartas]


porque acho que na verdade são as cartas que nunca recebi,
as palavras que nunca compartilhei comigo mesmo, ou com outrem.
e porque a poesia não se limita a versos e músicas.
porque não preciso ser coerente.
porque não é preciso a poesia.
porque há outras formas de se dizer o que se deve dizer.
porque é mais sincero porque é confortável porque faz bem porque é preciso
e quase necessário.
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imagem: http://www.cs.kuleuven.ac.be/~dirk/.image/ada-letters.jpg

domingo, 18 de maio de 2008

carta n° 2 [conselho aos amigos - ou do caminho]

caros amigos, não se iludam!

a vida dói. mas tem lá seu mercúrio cromo e vermelho. toda ferida há de sarar, e todo desalento há de passar.

esperança, essa idiota equilibrista bêbada, resiste infinita à queda na face bruta da realidade.

toda tormenta há de acalmar, toda malícia há de sumir e todo caminho há de acabar. e só se têm felicidade verdadeira, quando se descobre que na verdade

, não existe caminho algum.

PS: detesto sair de casa. me lembra que eu sou menor que o mundo.

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sexta-feira, 16 de maio de 2008

CORPUS 1


I - do natural
põe tenção em cada músculo!
percebe a força da carne,
sente o ruído estrondoso do sangue!
conquista a forma perfeita
de cada músculo tracejado,
as víceras bem ordenadas
e a opulência da forma rija
de cada membro de teu corpo.
tateia no teu ventre a perfeição
gutural que incide sobre a fibra
de energia, beleza, vitalidade.

faz observar teus pés
sente o poder de cada passo
a retumbar no universo
com estrondo divino ao pisar o solo,
sente o poder incontestável: anda!
torna a pisar como se fosse um deus
com segurança e força,
dos pés às pernas tuas.

pega com firmeza descuidada
com as pontas dos dedos
cada centímetro puro de tua área
indelével, nos teus ossos, como na pele,
elege a forma perfeita do braço,
das coxas, dos ombros: a forma sua!
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imagem: http://www.zipt.com/images/body.jpg

CORPUS 2


II - do narciso de cada um
sente o fulgor que aflora
desde os seus olhos e boca
até as costas, e desce...
displicentemente.
renda-se ao fogo amável
que sobe pelas pernas
lambendo-lhe a virilha,
tocando-lhe o sexo...
revela teu desejo!

enaltece-te! venera-te!
arde-te! consome-te!
consuma-se!

renda-te ao menos uma vez
ao teu prazer aprisionado
mais primitivo, repudiável, lancinante!
lamba-se os dedos e os lábios.
toca sem mesura, com carinho,
com esse amor tão sujo
cada parte dessa pele que te limita
cada sensação, a mais escondida.

toma proveito da primazia do corpo ilimitado
que só se encontra no teu desejo imediato.

toca tua silhueta,
amamenta-te e deleita
cada segundo de sua vontade.

ama-te!

goza teu corpo!
domina teu corpo,
esbelto e pleno,
belo enquanto puro,
e forte e inteiro.
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CORPUS 3

III - do tempo
aproveita a força reunida
o amor próprio resgatado
e foge!

corre das cidades, dos outros,
de ti mesmo, do tempo.

pois quando o espelho alcançar-te
muito antes do desejado
pouco antes do esquecido,
do teu corpo tu há de sentir
apenas a falta...

decairás!... aos poucos.
e se convencerás do contrário.
mas na certezado engano,
até negar-se a ti mesmo, enfim.

ama-te agora
pois que no futuro não distante
terá perdido tua face,
teu vigor, tua forma.
mirrarás na pele e na vontade.

e cairás por terra,
e serás terra
e nada mais
nem ti.
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ELIZABETH FRINK (1930-1993) Running Man, 1976

CORPUS 4

IV - do amor

amei luzia como se amasse a mim
luzia luziu, reluziu, brilhou, sumiu
fiquei em luzia, me perdi de mim
ao acaso ando, sem face, sem luz
pois nem a vida sem luzia me seduz
devagar esmorecerei no esquecimento
e meu corpo se apagará n vento
até que em luzia eu volte a mim,
quando eu for consumido pelo tempo
no momento eterno do meu fim.

não amais no mundo alma segunda!
pois só lhe há de trazer sofrimento
e tudo, depois de prazer, será lamento
nada que não a causa de dor profunda.

conduz teu amor a ti - creia, te basta!
do contrário encontrarás pena nefasta
na beira da morte do ente querido
só uma parte de tu'alma irás consigo
e quebrantado viverás, sem abrigo,
o próprio amor negarás, te digo!

amor não é essa coisa que prospera
pois eis que após o amor, reina a espera.
ó amor, se vais, mata-me contigo
não me abandona na espera sem sentido.
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imagem: http://www.nrfoto.no/03art/artgallery/pages/body_01.htm

CORPUS 5

V - da morte
do que se fez não há mais nada
tudo é vazio é tudo é vazio é tudo
há somente uma pena ritmada
vazio e nada e vazio e nada e vazio
mas se escuta ainda um canto pio
tudo oculto tudo oculta tudo tido oculto
que reina acima nessa hora sagrada
nada e tudo oculto no vazio é revelado...
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imagem: http://images.artnet.com/images_US/magazine/news/artmarketwatch/artmarketwatch5-15-3.jpg
Piotr Uklanski, Untitled (Skull) 1999

CORPUS 6

VI - do além
plenitude joga teus raios sobre mim!
nada me perturba, nesse canto de jardim.
pouca coisa ou nada me incomoda
- nada sobra, senão um pouco de tédio,
nada falta, senão um pouco de desejo.
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imagem:http://www.antiques.dk.com/assets/420/10357149.JPG
Emile Albert Gruppe (1896-1978) - Nude at Forest's Edge

CORPUS 7

VII - da encarnação
Papai do céu, me põe no chão!
Lá na terra onde todos estão
meio perdidos, como grãos
num grande galinheiro.

Papai do céu, não me lava a mal
mas é que sinto falta de agito
do corpo que roda, sofrido
e amado, caído qual pião.

Papai do céu, não se aborrece
lembra que eu faço boa parece
não me esqueço do senhor, não.

Papai do céu, vê se me nasce!
pois aqui há perfeito amor e enlace
mas meu peito sente falta de paixão.
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imagem: http://hesperia.canalblog.com/albums/etudes_de_leonard_de_vinci/m-Etude_d_enfant.jpg
Leonardo da Vinci - "Etude d'enfant"

quinta-feira, 15 de maio de 2008

do ex-aprendiz



decláro-vos, hoje lhes nasceu um poeta!
- a novidade: não sou eu.
não sou poeta, se de fato este não o for.
pois se é que eu sinto dor,
ele a tudo e tudo e todos interpela.

foi parido pelo mundo poeta maior
poeta que não é só de vento
é carne e osso e pó e nó e dó
e ré e mi e fá e só lá si dá
com tudo que há para se versar.

filho, de versos roubados, alheios, ocultados:
toma para ti todas as palavras!
toma até minh'alma, se for de préstimo.

mas se essa não é de nunhum acréssimo,
devolve-a, para eu rendê-la aos vossos versos.

estou feliz, de fato: rio como quem é superado.

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*pro rafael
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Boy Writing (White Bonded Marble)